Revelação, tradições e tradição
-
Dom Jean de Monléon - 07 Aug, 2025
Itinerários, n. 85 (julho-agosto de 1964), pp. 132-147
“Revelação” vem do verbo latim “revelare”, que significa levantar o véu, descobrir. O véu de que se trata no caso é aquele que dissimula aos nossos olhos o Deus Criador, Ordenador Supremo e Soberano Mestre de todas as coisas, pois esse Deus é, por Sua natureza, invisível. Embora Sua presença nos envolva por todos os lados, nada podemos captar d’Ele com os sentidos do corpo. Não teríamos nenhuma possibilidade de conhecê-Lo e ter contato com Ele, caso Ele não se dignasse a se “revelar” e assim nos permitisse vislumbrar algo de Sua Potência, de Sua Sabedoria, de Sua Bondade etc. A revelação não é outra coisa senão o conjunto dessas manifestações, ou desvendares. Nós a encontramos em três planos sobrepostos: o da natureza, o da graça e o da glória.
1 — Na ordem natural, Deus se deixa adivinhar por meio das obras da Criação. Os céus cantam a Sua glória, diz o salmista¹. As estrelas, por seu número, por sua beleza, pela ordem admirável que preside seus movimentos, apesar da inacreditável rapidez com a qual elas percorrem suas órbitas, rendem um magnífico testemunho ao poder e à inteligência d’Aquele que as lançou nos abismos do infinito. E não apenas as estrelas, mas todas as criaturas. Até mesmo as mais ínfimas, todas – se examinarmos com atenção – nos falam do Criador, nos falam de Sua Sabedoria, de Sua Potência, de Seu gênio inventivo, de Sua Bondade. Todo o universo emite um cântico maravilhoso, pulcherrimum carmen, diz Santo Agostinho. E o Concílio Vaticano, na Constituição Dei Filius, definiu como verdade de fé católica que o objetivo da criação é “a manifestação da perfeição divina, pelos bens que são distribuídos às criaturas².” Já na antiguidade o autor da Sabedoria reprovava severamente os homens por não saberem, através das coisas que são evidentemente boas, perceber Aquele que é o seu artesão e de não se elevarem, diante da beleza e da grandiosidade da criação, até ao conhecimento do Criador³. São Paulo retoma o mesmo assunto na Epístola aos Romanos⁴. E essa verdade é tão evidente que certo dia ela atingiu a um dos inimigos mais pérfidos da fé cristã, Voltaire, como se vê nesta célebre confissão:
L'univers m'embarrasse, et je ne puis songer
Que cette horloge marche, et n'ait point d'horloger.
2 — No entanto, para estimular o homem, para ajudá-lo e firmá-lo nessa busca, “aprouve à sabedoria e à bondade [do Criador] revelar-Se ao gênero humano por uma outra via, por uma via sobrenatural⁵.” Deus dignou-se falar diretamente conosco, primeiro pelos profetas, depois pelo seu Filho, o Filho que fez herdeiro de todas as coisas, pelo qual fez os mundos e que, sendo o esplendor de Sua glória e a figura [expressiva] de Sua substância, se senta [agora] à direita da majestade, no mais alto dos céus⁶.”
O ensinamento de Cristo foi completado pelo dos apóstolos. Mas, através de diferentes órgãos, é sempre o Verbo que escutamos; o Verbo, isto é, o Filho de Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Os profetas não dizem: “As palavras de Deus se fizeram entender a mim”, eles sempre empregam o singular. Eles sempre dizem: O Verbo, A Palavra, O Logos, a fim de sabermos que é o próprio Deus a ser expresso por suas bocas.
A revelação, nesse segundo plano, é a soma das palavras que Deus então endereçou à humanidade, desde as origens do mundo até à morte do apóstolo São João, a qual marca o seu ponto final.
3 — Enfim, Deus manifesta-se aos eleitos por uma visão face a face da eternidade: Videbimus eum sicuti est, Nós o veremos tal como Ele é⁷. Os bem-aventurados conhecerão a Deus em si mesmo, clara e imediatamente. Eles o contemplarão na unidade de sua essência, na trindade de suas pessoas, no esplendor infinito de suas perfeições. Dessa revelação nada podemos dizer, pois o olho do homem não viu e sua orelha não ouviu, nem seu coração imaginou aquilo que Deus preparou para aqueles que O amam⁸. Todavia, Moisés no Sinai, Elias no monte Horebe, São Paulo quando foi elevado ao terceiro céu, São João no Apocalipse e todos os santos que foram favorecidos por graças místicas e excepcionais tiveram como que uma antevisão, ou um antepasto, disso.
“Quando o Altíssimo visita a alma razoável, escreve Santa Teresa d’Ávila, é-lhe, por vezes, concedida a visão d’Ele, e ela O percebe dentro de si, sem nenhuma forma sensível e muito mais claramente do que uma criatura mortal jamais poderia ver a uma outra. Pois os olhos da alma contemplam aí uma plenitude espiritual, e não corporal, da qual nada consigo dizer, de tanto me faltarem a imaginação e as palavras⁹.”
Santa Francisca Romana teve um dia a visão do Ser tal como Ele era antes da criação dos anjos. Era um círculo imenso e esplêndido. Esse círculo repousava apenas sobre si mesmo. Ele era o seu próprio sustentáculo.
Um esplendor inédito, que o espírito não imagina, saía desse círculo, e Francisca não conseguia olhar fixamente para esse brilho intolerável. Abaixo desse círculo infinito e deslumbrante, havia um deserto que dava uma ideia de vazio. Era o local do Céu antes que o Céu fosse. Dentro do círculo havia algo como a semelhança de uma coluna muito branca e toda deslumbrante, era como um espelho no qual Francisca percebia o reflexo da Divindade, alguns dos seus atributos: princípio sem princípio, fim sem fim¹⁰.
***
A única manifestação que aqui nos interessa é a segunda, a da graça: o Logos, a Palavra de Deus.
Essa Palavra, onde é que ela se encontra registrada?
Eis o ponto nevrálgico! Os protestantes, com efeito, admitem apenas a Bíblia como fonte da Revelação, e apenas sob a condição de que ela seja interpretada pelo livre exame, fora de toda autoridade hierárquica: “É pelo rejeitar da Tradição, portanto de tudo aquilo que desnaturou o cristianismo até transformá-lo em catolicismo romano, e pelo retorno às Escrituras como única fonte de fé, que se caracteriza teologicamente a Reforma¹¹.”
Wyclef no século XV já dizia: “Que cada fiel apoie sua doutrina na leitura da Bíblia, nela encontraremos a fé mais pura e completa, mais do que em tudo que os prelados comentam e professam¹².”
A mesma teoria foi retomada por Jean Huss. Mas é principalmente Lutero que se fez seu voraz defensor e propagador. A rejeição formal da Tradição é uma das questões essenciais da sua Reforma. Para ele, a Bíblia contém toda a revelação. Nada devemos acrescentar-lhe, nada retirar-lhe. Todo acréscimo a esse livro sagrado é um adicional humano, e vem de Satanás.
“O fiel cristão”, diz ele em Leipzig, “a junho de 1529, não pode se constranger a admitir fora das Sagradas Escrituras o que quer que esteja a propriamente falar do direito divino, a menos que se siga uma nova revelação bem demonstrada. Ainda mais, o direito divino nos proíbe de crer em outra coisa para além daquilo que nos é provado pelas Escrituras, ou por uma revelação manifesta.”
Ele denuncia como um abuso intolerável a pretensão exclusiva de interpretar as Escrituras que a hierarquia arroga para si. “O Papa e os bispos monopolizaram a Bíblia, embora ela fosse o livro das pessoas de fé. Só eles podem compreendê-la, só eles têm o direito de interpretá-la. Nem o Papa nem os Concílios podem nada contra o homem espiritual… quer dizer, aquele que tem a fé…
Não é pela tradição, nem pela filologia, nem pela ciência que podemos penetrar as Escrituras, mas somente pela fé. Aquele que tem a fé, tem todas as chaves. Todo cristão deve ter essa convicção de que as Sagradas Escrituras são uma luz espiritual, muito mais clara do que o sol… Foi o demônio quem extraviou os Padres, quem dispersou os fiéis de ler a Bíblia, para conseguir, por meio dos comentários da Igreja, inculcar-lhe suas doutrinas venenosas…
A Bíblia basta e basta-se a si, não havendo nada a acrescentar-lhe, nada a retirar-lhe¹³.”
Convém reconhecer que na época essas declarações provocaram nos protestantes sinceros um verdadeiro entusiasmo. Eles acreditavam estar retornando à pureza da fé, livrando-a de toda a confusão de tradições aos quais eles atribuíam uma origem apenas humana: a Missa, os ritos litúrgicos, a hierarquia eclesiástica, o purgatório, a doutrina das indulgências etc.
As Escrituras são, portanto, aos olhos dos reformados, a única fonte da Revelação. Elas são a única, perfeita e universal regra de fé, imediatamente acessível e absolutamente necessária a todos os fieis.
***
É contra essa posição que o Concílio de Trento, na sua quarta sessão, declarou “fonte autêntica da Revelação, ao lado do Antigo e do Novo Testamento, as tradições não escritas que, recebidas pelos apóstolos da boca do próprio Cristo, ou transmitidas de mão em mão pelos Apóstolos sob a direção do Espírito Santo, chegaram até a nós […] O Concílio as recebe e as venera com um respeito e uma piedade iguais [àqueles que professa quanto às próprias Sagradas Escrituras]. Se alguém [as] despreza […] em conhecimento de causa e deliberadamente, seja anátema¹⁴.”
Por pouco que queiramos pensar nisso direito, a existência dessa Tradição, ao lado das Escrituras, se impõe como uma necessidade. São Vicente de Lérins, um dos primeiros, o demonstrou claramente: “Dada a profundidade mesma das Sagradas Escrituras”, diz ele, “as pessoas não as entendem em apenas um sentido. As mesmas palavras são compreendidas de um modo por uma pessoa, de outro modo por outra pessoa, de sorte que, praticamente, há tantas perspectivas diferentes quanto há homens. Novaciano explica isso de uma maneira, Sabélio de outra, Donato de uma terceira e assim por diante: Ário, Eunômio, Macedônio, Fócio, Apolinário, Prisciliano, Joviniano, Pelágio, Celéstio e, enfim, Nestório a interpretaram cada um ao seu modo. É por ser enormemente necessário, graças a equívocos que apresentam tantos erros diferentes, que a linha de interpretação dos profetas e dos apóstolos se mantenha de acordo com a norma do sentido da Igreja Católica. E na Igreja Católica convém zelar com o maior cuidado para que nos mantenhamos naquilo em que se acreditou em todos os lugares, em todos os tempos e por todas as pessoas (quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est)¹⁵.”
A Tradição é, portanto, necessária para se autenticar as Sagradas Escrituras, para nos garantir que está lá mesmo a Palavra de Deus e sobretudo para interpretá-la com precisão. Se somente possuíssemos a Bíblia, se não contássemos com um magistério que nos esclarece o sentido no qual devemos entendê-la, poderíamos negar perfeitamente, com Helvétius por exemplo, a perpétua virgindade de Maria. O Evangelho não nos fala, em várias partes, dos “irmãos de Jesus¹⁶”? Então eles eram filhos de Maria também?
Teríamos até mesmo o direito de afirmar, com Ário, que Jesus é inferior a seu Pai, pois ele declara explicitamente: “O Pai é maior do que eu¹⁷”; com Novaciano, que há pecados imperdoáveis, os quais não podem ser perdoados nem neste mundo, nem em outro. O Evangelho o diz com essas palavras, quando fala da blasfêmia contra o Espírito Santo¹⁸. E assim poderíamos continuar a seguir o curso das heresias ao longo de toda a história. Veríamos que elas jamais tiveram falta de textos bíblicos nos quais apoiar seus desvios de doutrina. Se não houvesse uma norma, infalível e superior às próprias Escrituras, para nos mostrar qual é o sentido em que devemos entender as expressões propositalmente estranhas ou ambíguas, das quais ela frequentemente se serve quando quer nos fazer vislumbrar mistérios mais profundos, a Igreja não teria levado muito tempo para se tornar uma nova torre de Babel.
Ora, é a essa norma que chamamos Tradição.
***
Na linguagem corrente, essa palavra geralmente é empregada para designar um costume ou uma crença, que se transmitiu de tradição em tradição, sem ser imposta ou garantida por uma autoridade formal. Em todas as sociedades humanas estabelecem-se assim, pouco a pouco, as tradições, que, com o tempo, assumem valor de dogmas ou de leis. Todas as instituições, todas as profissões, todos os ofícios têm as suas. Pela disciplina que elas impõem, essas tradições refreiam a fantasia, o espírito de independência, a mania de inovações, e constituem assim um potente elemento de estabilidade. Ninguém desconhece a forma e a grandeza que a Inglaterra, por exemplo, retira do respeito que ela carrega em si por tudo aquilo que vem de seu passado. Igualmente, esse é o zelo com o qual as ordens religiosas guardam os usos e costumes estabelecidos pelos seus anciões, que lhes garantem, muito consideravelmente, a sua solidez e perenidade. Assim a Igreja vela por conservar as tradições que se estabeleceram com o tempo nos seus ritos e na sua liturgia.
“Creio dever apenas lhe advertir de uma coisa”, escrevia São Jerônimo a Lucínio, que o consultava a fim de saber se convinha jejuar ao sábado e comungar todos os dias “As tradições eclesiásticas, sobretudo quando elas não carregam nenhuma oposição quanto à fé, devem ser observadas, tais como os nossos antepassados no-las transmitiram, e que os costumes de uns não sejam anulados pelos costumes de outros¹⁹…”
Muitas coisas que as Igrejas observam por tradição obtiveram a autoridade de uma lei escrita. É em virtude desse princípio que ainda hoje, na Igreja Romana, certas dioceses, Milão e Lyon, por exemplo; certas ordens religiosas, como os cartuxos e os dominicanos, celebram o santo sacrifício da missa conforme ritos particulares. Um exemplo da regra enunciada por São Jerônimo é aquele do pão que deve servir à consagração. Sabe-se que a Igreja latina emprega para esse fim apenas o pão “ázimo”, isto é, sem fermento, ao passo que a Igreja oriental só usa o pão fermentado. Essas duas tradições parecem ser contraditórias, no entanto é provável que ambas remontem às origens do cristianismo. Bem verossímil é que os apóstolos e seus primeiros discípulos tenham se servido, indiferentemente, do pão que tinham à disposição²⁰. Pouco a pouco, os costumes se cristalizaram, se fixaram segundo as Igrejas, e tomaram tanta força de lei que, em 1565, o Papa São Pio V, pela bula Providentia Romani Pontificis, expressamente proibiu aos padres do rito latino, sob pena de suspensão perpétua a divinis, a consagração do pão fermentado, e, aos do rito grego, o emprego do pão ázimo²¹.
Adicionemos aqui, enquanto parênteses, e para aqueles entre os nossos leitores que ainda acreditam no valor simbólico das cerimônias da Igreja, que as duas práticas, embora aparentemente contraditórias, se justificam sem problemas. O fermento, com efeito, pode ser visto seja como um germe de corrupção, seja como princípio de vitalidade. A Igreja romana o toma na primeira acepção, ela o considera como uma figura do pecado original, e a hóstia do pão sem levedo é para ela uma imagem da carne imaculada do Cristo. A Igreja Grega, ao contrário, vê nele uma figura do Verbo, que vem vivificar, elevar a natureza humana²² e a tornar saborosa para Deus.
***
Nem todas as tradições, contudo, apresentam garantias tão sólidas. Muito frequentemente elas alteraram a realidade, desfiguraram a história, deram créditos a muitos abusos. E as condenações vindas de Nosso Senhor contra aquelas dos Fariseus fazem pairar sobre esse tipo de transmissão uma suspicácia que explica a desconfiança dos protestantes e dos racionalistas quanto a elas. Convém, então, da maneira mais excelsa, distinguir “a Tradição” das tradições particulares e saber o que é que a Igreja entende por essa palavra.
A Tradição é propriamente a soma global do ensinamento que os Apóstolos receberam da boca do próprio Cristo (completado pela inspiração do Espírito Santo) e transmitiram a seus sucessores.
Nosso Senhor apresenta-se a nós com o primeiro “Traditor”: “Minha doutrina não é minha”, diz ele, “mas d’Aquele que me enviou²³.” E ainda: “Por mim mesmo não faço nada, mas o que meu Pai me ensinou eu vo-lo digo²⁴.”
Ele é essencialmente o Mess*ias, isto é, o Mensageiro, o porta-voz, o Logos, Aquele que fala em nome do Pai.
Por sua vez, os apóstolos não são outra coisa senão seus enviados. O que eles publicam e ensinam é unicamente o que aprenderam d’Ele e de seu Paráclito. Primeiros depositários da revelação cristã, transmitiram o seu conteúdo inteiro e por todos os tempos aos sucessores por eles escolhidos. Eis aquilo a que a Igreja chama traditio apostolica, depositum apostolicum, na qual ela põe a fonte de todo conhecimento ulterior²⁵.
Toda a doutrina que ele devia desenvolver e explicitar no curso de sua história; todos os dogmas que foram definidos através dos séculos — tais quais a infalibilidade pontifical ou a Assunção — e todos aqueles que ainda o serão, até o fim do mundo; e todas as regras de moral ou de perfeição que foram elaboradas e esclarecidas ao longo do tempo estavam virtualmente contidas nessa “Tradição”, como todos os grãos de uma espiga numa semente. Agora, é importante entendermos bem que as Sagradas Escrituras só nos dão uma parte disso. Os Apóstolos não registraram por escrito tudo quanto eles aprenderam de Cristo.
São João o diz expressamente, finalizando seu Evangelho: “Há ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se as escrevêssemos uma por uma, creio que nem o mundo inteiro poderia conter os livros que seriam necessários.”
Evidentemente, trata-se de uma hipérbole²⁶, mas que claramente dá a entender que o Salvador, durante os três anos que consagrou à instrução de seus apóstolos, lhes revelou muitas outras coisas além daquelas registradas nos Evangelhos. Se eles não escreveram tudo, é porque não tiveram tempo, e também porque eles não o julgaram oportuno. Eles não queriam arriscar jogar pérolas aos porcos e render discussões a espíritos despreparados para recebê-las — mistérios tão profundos, tão sagrados quanto o da Encarnação ou o da Santa Eucaristia. São Jerônimo ensina-nos que, ainda no seu tempo, o Símbolo dos Apóstolos não deveria ter sido posto por escrito: dever-se-ia aprendê-lo de cor²⁷. E, se bem quisermos nos lembrar da ironia com a qual os atenienses acolheram São Paulo, quando ele se pôs a lhes falar da ressurreição da carne compreenderemos sem dificuldades a prudência²⁸.
A doutrina de Cristo é, assim, transmitida por uma via dupla: as Escrituras e a tradição oral. Essa verdade foi constantemente ensinada na Igreja e solenemente afirmada pelo Concílio de Trento, e depois pelo do Vaticano I²⁹. Ela não poderia ser contestada ou atenuada hoje em dia sem pôr em risco todo o edifício da fé cristã. Podemos concordar com os protestantes que haja apenas uma fonte de revelação, mas é que essa fonte única não é a Bíblia, é a Tradição, da qual as Sagradas Escrituras são apenas uma parte.
A Tradição verbal é anterior aos quatro evangelhos e às epístolas. “A boa nova” foi em grande parte transmitida primeiro oralmente. O próprio Cristo nada escreveu e não intimou a nenhum de seus apóstolos a ordem de escrever. Mas ele comandou expressamente que pregassem a sua doutrina e que por toda a terra se fizessem testemunhas autorizadas. Desse modo, eles jamais redigiram ex professo tratados de doutrina, jamais intencionaram um ensinamento escrito como parte do seu mandato apostólico. Alguns dentre eles não deixaram nada por escrito. Os outros só pegaram na pena ocasionalmente, para defender ou explicar algumas questões de dogma ou de moral, de acordo com as necessidades do momento, ou então para responder a perguntas que lhes tinham feito³⁰.
“Mateus”, escreve Eusébio, o mais antigo dos nossos historiadores eclesiásticos, “pregou primeiro aos hebreus. Como ele teve de ir em seguida a outros países, deu-lhes seu Evangelho em sua língua materna. Assim, ele compensava por meio dos escritos a sua ausência. João pregava apenas em voz alta… [No fim de sua vida], ele passa a escrever [seu Evangelho], a fim de expor aquilo que o Cristo havia feito já no começo da sua pregação³¹, pois os sinópticos todos haviam passado silenciosamente por esse período.”
Os doutores da Idade Média não esperaram pelos neo-liturgistas de nosso tempo para notar que a fórmula da consagração do cálice, inscrita no cânone da Missa, não reproduz nenhuma daquelas que foram relatadas pelos evangelistas. E, em particular, que as palavras mysterium fidei não se encontram em lugar nenhum no texto sagrado. Mas o julgamento que eles exercem acerca dessa aparente deformação é bem diferente daquele dos modernos.
“Se devemos”, diz São Boaventura, “crer somente no Antigo e no Novo Testamento, seremos então obrigados a rejeitar essa fórmula, a fim de nos mantermos naquela que é dada pelo Evangelho?” E ele responde sem a menor hesitação, com uma notável firmeza: “A fórmula [que se encontra no cânone] é a correta. É ela certa, é ela a conveniente… Que ela seja a correta segue-se de que é a empregada pela Igreja Romana, a qual foi estabelecida pelos apóstolos.”
“Essa Igreja, fundada sobre a pedra da fé apostólica”, diz o Papa Inocêncio III, “sempre guardou com uma inviolável fidelidade aquilo que recebeu dos apóstolos, os quais a instruíram diretamente por meio de sua palavra e de seu exemplo acerca dos ritos a seguir. Ela toma dos bem-aventurados Pedro e Paulo — considerados desde sua vida como fundadores, e dos quais ela conserva os restos [desde sua morte] — esse rito do divino sacrifício, por ela imutavelmente guardado até aos dias de hoje³².” É, portanto, necessário preferir a fórmula do cânone: “pois esta nos foi dada não a título de relato [histórico], mas a título de instituição: convém recebê-la [como advinda] dos próprios apóstolos, ainda mais do que [as fórmulas que nos foram transmitidas] pelos evangelistas: pois os apóstolos estabeleceram a Igreja conforme o que eles haviam recebido do Senhor, ao passo que os evangelistas relataram as palavras e as ações do Salvador concentrando-se mais no sentido do que na precisão da letra. É por isso que há dessemelhanças na forma de seus relatos. Eles não buscaram transmiti-los exatamente, mas estão de acordo quanto ao sentido que desejaram expressar³³.”
***
De fato, poderíamos temer que essa Tradição se deforme, passando assim, de boca em boca. Mas isso seria um erro. A transmissão oral é frequentemente mais segura do que a escrita. Há uma quantidade infinita de receitas, de segredos de construção ou de fabricação, de fórmulas mágicas, que desse modo têm atravessado as gerações, sem jamais se esconderem no papel nem se alterarem sequer por uma sílaba! Baste evocar a ciência astronômica dos caldeus ou os procedimentos empregados pelos egípcios para se realizarem as estonteantes obras de arquitetura que nos legaram. Ainda nos nossos dias, as populações nômades ou as raças atrasadas constantemente fornecem exemplos de uma fidelidade verbal tão imutável quanto às inscrições gravadas sobre a pedra.
As orelhas dos iniciados — ou dos fiéis — são frequentemente mais vigilantes do que os olhos ou a mão do copista para detectar a menor imprecisão. Na correspondência de Santo Agostinho, há um traço bastante significativo a respeito disso. Revisando a versão latina da Bíblia, como lhe havia pedido o Papa Dâmaso, São Jerônimo, após minuciosas investigações, acreditou dever corrigir o nome da planta sob a qual se abrigava o profetas Jonas enquanto esperava pela ruína de Nínive, por ele anunciada. E ele põe “hera” (hedera) no local em que, até então, se dizia “abóbora” (cucurbita). Mas essa modificação levou tempestades a Roma e à África. Em uma igreja vizinha de Hipona, escutar esse termo insólito durante um sermão provocou uma tal confusão entre os assistentes que Santo Agostinho se viu constrangido a escrever a seu amigo, pedindo-lhe que respeitasse o texto usual e não impusesse mudanças tão divergentes a orelhas piedosas³⁴.
Em geral, seria um erro acreditar que tradições orais são menos seguras do que documentos escritos. Mas, por outro lado, quando se trata das verdades da fé, Cristo garantiu a sua transmissão inviolável pela instituição de um órgão encarregado de dispensar, autenticamente, o seu ensinamento, um órgão por Ele mesmo protegido de todo desvio. Esse órgão são os apóstolos e a hierarquia que lhes sucedeu.
Jesus prometeu estar com eles todos os dias até ao fim dos tempos. Estar com alguém é uma expressão familiar às Escrituras, para indicar da parte de Deus uma assistência cuja eficácia é absoluta. Todos os dias indica que essa assistência não é intermitente. Ela é contínua, exerce-se a todo instante e durará até ao juízo final. Além disso, a transmissão então assegurada é viva, os sucessores dos apóstolos não repetem o depósito que receberam como dictafones ou papagaios. Eles se comportam como mestres dotados de inteligência; explicam, desenvolvem e aprofundam a doutrina que têm de ensinar, e a adaptam à mentalidade de seus contemporâneos, como o próprio Cristo faria, ou os apóstolos caso estivessem vivos nos dias de hoje.
***
Segue-se que essa Tradição a que chamamos “oral” seja escrita desde muito tempo. Ela era verbal apenas nos primeiros séculos da Igreja, encontra-se registrada essencialmente nos diferentes Símbolos e nos formulários que os Papas ou os Concílios redigiram ao longo dos séculos, a fim de defender a fé contra os erros de seus tempos; a fim de afirmar, por exemplo, que há sete sacramentos, nem mais nem menos; que as indulgências proporcionam alívio às almas que as obtiveram; que o culto das imagens é lícito; e assim para todas as coisas que não estão formalmente enunciadas no Evangelho.
Essa Tradição também se expressa pela prática disciplinar e litúrgica da Igreja³⁵, pelos ensinamentos dos soberanos pontífices, dos decretos dos Concílios, do magistério ordinário dos bispos, do consentimento unânime dos fiéis etc.
Mas o reservatório principal se encontra nos escritos dos autores que designamos sob o nome de Pais da Igreja. Mas quem são essas graves e misteriosas personagens?
Na Encíclica Æterni Patris³⁶, o Papa Leão XIII apresenta-os como homens que, por disposição especial de Cristo, receberam a guarda do depósito da revelação; que foram gratificados de um carisma especial para entender e explicar as Escrituras; que brilharam como tochas para iluminar o povo cristão pelos seus exemplos e ensinamentos, e para proteger a doutrina da Igreja contra as heresias.
“Assim como”, diz ele, “a Providência Divina suscitou mártires de uma coragem e de uma generosidade indomáveis para defender a Igreja contra a crueldade dos tiranos, assim também ela se pôs contra aqueles que falsamente se denominam ‘filósofos’ e contra os heréticos. Foram homens insignes por sua sabedoria, capazes de defender o tesouro das verdades reveladas, mesmo fazendo apelo aos recursos da razão humana.”
Hoje em dia é comum ouvirmos que “os Padres eram homens de seu tempo” e que, consequentemente, eles não são mais do nosso. Essa proposição pode ser defendida na perspectiva científica, na histórica, na social ou na política, mas é insustentável no plano da teologia, e, mais particularmente, no da exegese.
Os Padres são testemunhas qualificadas, patenteadas e insubstituíveis da Tradição da Igreja e de sua crença. Eles mesmos apresentam-se como tais. “O que ensinamos”, escreve São Basílio, “não são de modo nenhum resultados de nossas reflexões pessoais, mas aquilo que aprendemos dos Santos Padres³⁷”. Ou seja, dos apóstolos e dos padres que nos precederam. O seu papel central é o de recolher, expor e fixar nas suas obras todo o ensinamento de Cristo, do qual os apóstolos só puderam escrever uma parte. Eles o fizeram com a assistência de um “carisma”, isto é, de uma graça particular que se manteve com eles³⁸. A Igreja, muito graciosamente, chama a eles seus “Pais”, pois realmente assumiram esse papel ao seu lado. Eles a elevaram, protegeram, defenderam e guiaram quando ainda era pequena, quando ainda não havia tomado “forma” e firmado seus pés.
Ela nutriu-se de suas obras, reconhecendo neles uma autoridade quase igual àquela das próprias Escrituras³⁹. Hoje em dia, embora tenha crescido até às extremidades da terra, embora tenha se tornado a mulher forte louvada pelo autor dos Provérbios⁴⁰, ela permanece aos olhos deles uma filha deferente e submissa. Cada vez que ela julga necessário definir um dogma novo, são eles quem ela vai consultar em primeiro lugar, antes dos teólogos, antes dos sábios, antes dos exegetas. É deles que ela sempre pede por aquilo que convém crer e ensinar, é deles a autoridade que ela toma por decisiva em matéria de doutrina. Ela jamais vai contradizê-los, jamais vai hesitar em segui-los quando estiverem de acordo a respeito de alguma questão.
Ninguém compreendeu melhor o lugar que eles ocupam na sua estrutura doutrinal do que o Cardeal Newman no último século, ninguém expressou com mais finura e convicção a influência luminosa e apaziguante que a leitura deles pode exercer numa alma sinceramente apaixonada pela verdade. A Apologia, na qual o cardeal relata sua conversão, é uma magnífica defesa em seu favor.
É o desejo de aprofundar a autêntica doutrina da Igreja primitiva sobre a Santíssima Trindade que o levou a folheá-los, e bem rapidamente ele foi impactado pela “doce música”, a “terna luz” — segundo as suas próprias palavras — cuja leitura lhe envolvia a alma. Agora, ele se dedicou a esse estudo com uma verdadeira paixão, contando que encontraria nele a justificação da teologia anglicana. No entanto, eis que se deu o contrário, uma evidência pouco a pouco se impunha sobre ele. Manifestamente, indubitavelmente, a Igreja na qual se encontrava a doutrina dos Padres era a de Roma. Todas as crenças, todas as devoções que os protestantes reprovavam do catolicismo, como se fossem invocações sem fundamento espiritual ou corrupções da fé inicial: a Presença real, o culto da Virgem e dos santos, a vida religiosa, a primazia do sucessor de Pedro, etc., tudo isso encontrava-se em germe nos testemunhos irrecusáveis da fé primitiva, tudo isso era simplesmente o desenvolvimento lógico e harmonioso do cristianismo original. Dessa maneira, leal para consigo, incapaz de observar desde então uma prática religiosa que não mais estava de acordo com sua fé, Newman, a 9 de outubro de 1845, abjurou o protestantismo e retornou — essas são suas próprias palavras — “ao único rebanho do Redentor”.
***
Vemos quão capital é, na doutrina católica, o lugar ocupado pela Tradição não escrita, e quanto de vaidade não haveria em se pretender ignorá-la ou minimizá-la. Ela está misturada com as Escrituras de um modo tão estreito que nenhuma potência humana pode separar as duas. Cristo, os apóstolos e os Pais da Igreja formam um todo indivisível, uma hierarquia em três degraus, que não poderia ser deslocada. Bem longe de ser um amálgama de considerações heteróclitas, de costumes ultrapassados, de lendas duvidosas ou de elucubrações fantasistas, a Tradição faz parte integrante e necessária da ciência da salvação. Os Pais da Igreja sempre permanecerão em ser os Mestres da doutrina, aqueles a quem todas as gerações devem recorrer até ao fim dos tempos, a fim de conhecer o ensinamento exato e autêntico do Evangelho. E quem quer que, como Newman, queira se pôr aos estudos para ter tão puramente quanto possível a verdade que os apóstolos receberam da boca de Cristo, esse encontrará nos Padres guias que infalivelmente os conduzirão à Cátedra de Pedro, ou seja, à Unidade.
Tradução: Igor Montez
Notas de rodapé
¹ Sl 18, 1.
² Denzinger 1783.
³ Sb 13, 1-5.
⁴ Rm 1, 20.
⁵ Vaticano I, sessão III. Denzinger 1785.
⁶ Hb 1, 2.
⁷ Jo 3, 2.
⁸ 1Cor 2, 9.
⁹ Castelo interior, sétima morada, I.
¹⁰ Ernest Hello, Physionomie de Saints, C. VII, Perrin, 1900.
¹¹ P. Bierman, La critique biblique et l’Église, p. 88.
¹² Speculum Ecclesiae militantis.
¹³ Cf. Vacant-Mangenot, Dictionnaire de Théologie; quanto à palavra Reforma, cc. 2039 e seguintes.
¹⁴ Denzinger 783 e 784. O Vaticano I retomou o mesmo decreto, quase que nos mesmos termos -
Denzinger 1787.
¹⁵ Vincent de Lérins, Commo*nitorium, II. Pat. Lat. T. I., C. 640.
¹⁶ Lc 8, 20; Jo 2, 12; Jo 7, 3-4; Mc13, 5; Mt 5, 24; etc.
¹⁷ Jo 14, 28
¹⁸ Mt 12, 32
¹⁹ Dialogue contre les Lucifériens, VIII - Pat. Lat., T. XXIII, C. 172.
²⁰ Cf. Vacant-Mangenot, Dictionnaire de théologie, quanto à palavra Ázimo, C. 2654.
²¹ O Papa Bento XIV, na Constituição De ritibus Graecorum, e o direito canônico atual sancionaram a mesma defesa.
²² Essa é a explicação dada por São Tomás na Suma (III, Q. 74, a.4), apoiando-se na autoridade de São Gregório Magno.
²³ Jo 7, 16.
²⁴ Jo 8, 28.
²⁵ Schœben, Dogmatique, T. I., p. 171.
²⁶ Essa maneira de falar é bem característica dos judeus. Cornelius a Lapide cita, a título de comparação, este ditado colhido dos livros rabínicos: “Se todos os mares fossem de tinta, se todos os juncos das rosas servisse para escrever; se o céu inteiro fosse um imenso pergaminho; mesmo isso não seria o bastante para expor o que há no coração de um príncipe.”
²⁷ Ad Hammachium, 28. Pat. Lat. T. XXIII, C. 396.
²⁸ At 17, 32.
²⁹ Denzinger 783 e 1787.
³⁰ Segundo A. Michel, Dictionnaire de théologie catholique, quanto à palavra Tradição, c. 1254
³¹ Hist. ecclésiastique, 1. III, C. XXIV, 6-II.
³² De Sacro altaris mysterio, IV, 4. Pat. Lat. T. CCXVII, c. 858.
³³ São Boaventura, Sentent. 1. IV, dist. VII, p. 2, 1. 2, q. 2. São Tomás compartilha da mesma opinião. Ele acrescenta a nuance de que isso se dá intencionalmente, a fim de não revelar as fórmulas dos Sacramentos, que deviam permanecer secretas, que os evangelistas modificaram as palavras pronunciadas por Cristo. Sabemos que certos autores, mais recentes, sem dúvida persuadidos de que haviam feito uma descoberta inédita e sensacional, não temeram eliminar com base em sua própria autoridade as palavras mysterium fidei. Isto provou uma chamada à ordem do Santo Ofício (A.A.S. 24 de julho de 1958, p. 536).
³⁴ Epistolarum classis II, ep. LXXI, 5.
³⁵ Desse modo, a festa de Apresentação da Santíssima Virgem Maria, em 21 de novembro, só nos é conhecida por ela, pois o Novo Testamento não lhe alude de modo algum.
³⁶ 4 de agosto de 1879.
³⁷ Ep. XL, 2. Pat. Gr., T. XXXIII, C. 588.
³⁸ A lista para, ao menos segundo a opinião mais admitida, em Santo Isidoro de Sevilha(† 636) para a Igreja romana, e em São João Damasceno († 749) para a Igreja grega.
³⁹ Cf. o Segundo Concílio de Constantinopla, em 553. Denzinger 212.
⁴⁰ Pr 31, 10-31.